Acessar anotações; por vezes claras, outras vezes metafóricas, é uma viagem por si só.
“Não temos ideia do quanto esquecemos”, dizia a frase que encontrei em meio aos notes que fiz durante uma viagem à Noruega, há dois anos. Ironicamente, não lembro onde estava escrita, mas ecoou dentro de mim, e certamente, anotei para lembrar que, de fato, esquecemos muito.
Era final de agosto de 2018, o mundo andava frenético e se alguém viesse do futuro e dissesse que um dia o planeta inteiro diminuiria o ritmo de uma só vez, eu não teria ouvido, tamanho era o “barulho”. Justamente por esta razão, viajar é um escape para muitos, e até um motivo para fugir da própria vida que se leva. Sempre achei que viajar assim, era um desperdício de tempo. Viagens não podem ocupar um lugar de total desiquilíbrio na nossa vida. Muito pelo contrário, devem somar, e é disso que eu mais sinto falta hoje. Por outro lado, ler o que anotei é fascinante. E aqui começa uma curiosa aventura por sensações e fragmentos diversos que formam a minha Noruega.
Viajei com um dos meus melhores amigos e, para minha própria surpresa, só hoje, em meio ao isolamento social, o defini assim. Não porque preciso, mas talvez porque ele se mostrou desta forma neste momento. E certamente; não porque precisou, mas porque é sensível.
Penso que por sermos conectados aos mesmos valores, o tempo continua nos aproximando. E definitivamente, foi o que tornou a viagem ainda mais incrível. A companhia certa na viagem certa, é outra viagem.
Chegamos em Oslo para ficar dois dias e depois, seguir para o interior e para perto dos famosos fiordes. Mesmo para quem visita Oslo pela primeira vez, 48 horas são suficientes para entender a dinâmica do lugar que é um dos mais caros do mundo para se viver, e talvez por isso, a maioria da população mora no seu entorno, deixando a cidade bem pacata.
O primeiro sentido que me faz “voltar” à Noruega é meu olfato. Lembro que ao sair do avião, senti um perfume orgânico. Logo, percebo que o chão do terminal era inteiro revestido de madeira maciça. Eu nunca tinha visto nada tão incrível em um aeroporto. Era belíssimo, e o perfume que sentia vinha do saguão, mais precisamente do seu assoalho. Só depois entendi que aquele era o primeiro aeroporto a alcançar a avaliação excelente de sustentabilidade do BREEAM – principal método de avaliação ambiental e sistema de classificação para edifícios do mundo. A Madeira certificada e a estrutura de concreto misturado com cinzas vulcânicas, além de reduzir em 35% as emissões de CO2, davam um show a parte aos nossos olhos. Pesquisar o que me move é outro hábito que estende qualquer viagem, pois continua mesmo depois que termina. E se você aprecia e valoriza design e sustentabilidade como eu, precisa colocar seus pés na Escandinávia (assim que possível) e explorar suas capitais, ao menos uma vez na vida.
Chegamos na cidade no início da tarde. Check in feito, saímos de bicicleta observando o velho e o novo que se misturavam em todo lugar. Avistamos a Câmara Municipal de Oslo, que é sede do Prêmio Nobel da Paz. Entramos no Museu Munch que abriga umas das versões do famoso “O Grito” de Edvard Munch. E assistimos a uma peça na Opera House de Oslo, projetada pelo renomado escritório Snøhetta. O interessante no teatro é que os convidados acessam a sala principal através de uma rampa, que na verdade, serve de telhado. Uma experiencia única e possibilita uma vista privilegiada da cidade.
O verão estava chegando ao fim e o outono se instalando. Sentia um misto de friozinho com sol. E a luz ia baixando lentamente, até anoitecer lá pelas 8:30h.
No dia seguinte, visitamos o Astrup Fearnley Museum, projetado por Renzo Piano. A instituição privada abriga uma coleção de arte absurda, focada em artistas que se apropriaram do lifestyle americano nos anos 80 como “matéria prima”. Encontramos também obras contemporâneas famosíssimas de Jeff Koons, Richard Prince, Cindy Sherman, Tom Sachs, Doug Aitken e Olafur Eliasson. Depois, seguimos para uma visita ao, digamos, bem intrigante, Vigeland Park com suas 212 esculturas que materializam assuntos sobre a existência humana, como o trabalho, a ira, o sexo, a maternidade, a mortalidade, e por aí vai etc.
No terceiro dia, seguimos para o interior e foi lá que, não só o tempo mudou definitivamente de ritmo, mas também senti que meu corpo se ajustou. Chegamos em Alesund e seguimos de carro para o Storfjord Hotel, um hotel boutique localizado a 40 minutos da cidade portuária, no vilarejo de Glomset.
Em meio aos alpes e próximo dos famosos fiordes, a vista era um espetáculo à parte. Os quartos espaçosos mesclavam detalhes da arquitetura tradicional escandinava com design moderno. A sensação de estar em uma casa me fez correr para a cama cheia de edredons, acender a lareira, pedir um chocolate quente e contemplar a vista. Senti paz na terra.
Amanheceu e quase que por instinto, quis me jogar na natureza. Café reforçado, partimos para uma caminhada montanha acima. Usar o corpo, “gastá-lo”, aquecê-lo e simplesmente respirar e silenciar a mente é possível lá e é possível em qualquer lugar; mas lá, existe uma entrega primitiva.
O fato de que as estações nos extremos do globo são bem definidas, torna as pessoas mais respeitosas aos seus comandos.
Andamos com Anniken, nossa guia local. Sétima geração a viver no mesmo vilarejo, ela nos conduziu em meio a historias fascinantes sobre sua vida. Respeitosamente, perguntou se éramos vegetarianos, para depois contar que no dia anterior, havia caçado seu primeiro animal selvagem. Isso também diz muito sobre as leis naturais da vida e da região. A caça mistura esporte e sobrevivência, e ela, mulher forte e corajosa, mas leve e bem informada, caçava para se alimentar e para nutrir suas tradições Vikings. Dentro do mesmo conceito, mas longe de experimentar a caça, colhemos blueberryes pelo caminho e ela nos ensinou uma maneira lúdica de comê-las, acumulando-as em pequenos galhos, como se fossem espetinhos. Anniken já viajou o mundo, morou na Austrália e voltou para a pequena vila, perguntei por que voltou, e ela disse: “porque aqui me sinto mais viva”.
Eu nunca esqueci isto sobre Anniken, e esta foi uma das lições desta viagem, “sentir é mais importante do que qualquer outra coisa”. Talvez por isso que não só “me jogo na vida”, mas gosto de anotar e escrever sobre o que vivo, não porque registro um momento no tempo, apenas, mas porque eu processo o que sinto ao longo do tempo.
Ao chegarmos no topo da montanha, talvez tenha ouvido o maior silêncio que já pude experimentar na vida. Foi aí que entendi mais uma lição: “o silêncio fala”. E para expulsar qualquer bloqueio que pudesse me impedir de sentir absolutamente tudo, combinei com Anniken que eu daria um “grito primal”, tiraria de mim o som mais alto que conseguisse, como uma forma de romper com o passado e me entregar àquele momento. E assim o fiz, para depois cair numa gargalhada sem fim. Foi uma sensação indescritível. Me senti com 7 anos de idade.
Montanha abaixo, ela nos contou que ninguém menos que Bill Gates já havia se hospedado no “nosso” hotel.
E que o escolheu pois aprecia o silêncio e a solitude. Quem assistiu seu documentário entende que sua mente nunca silencia, mas escolheu aquele minúsculo ponto no planeta para ler, contemplar e usar o silêncio como reflexo. Pensei comigo, mais uma lição concreta: “great minds think alike” 😉
Depois de quatro dias em meio à natureza e prazeres simples como leitura e ótimas conversas, deixamos o hotel dos sonhos e partimos para duas horas de carro em meio às montanhas. Pela estrada afora, avistamos fazendas, vacas bem nutridas trancando as estradas, enormes rolos de feno sobre o campo esperando o inverno chegar e carneiros por todo lado. Paramos em um mirador para apreciar um pedacinho do mais famoso fiorde da Noruega, o Geiranger. E seguimos para um almoço no restaurante do Hotel Union Eye, localizado no pé de uma montanha verde e no berço de outro fiorde deslumbrante, o Hjørund. Neste ponto, pegamos um barco e navegamos 20 KM pelo Hjørund, deslizando pelas águas espremidas por paredes rochosas e pequenas fazendas e vilarejos ao longo do caminho, chegamos em Alesund.
Atracamos em Alesund, a cidade portuária que é famosa pelo seu bacalhau. O município foi totalmente destruído por um incêndio em 1904 e inteira reconstruída no melhor estilo Art Nouveau. A partir deste ponto, começa uma nova viagem, a qual contarei em uma próxima oportunidade.
Com certeza escrever sobre algo que vivi ha quase dois anos, traz muita coisa nova para jogo, aliás, acho que anoto (também) para me permitir esquecer, guardar por um tempo, e reviver sob uma nova luz.
Assista ao video do grito que mencionei no texto