MARCELLO DANTAS “O ser humano sem vulnerabilidade é um engodo”

Sem troca e sem inspiração a vida se torna árida, é preciso sonhar, diz Marcello Dantas

Por Dani Pizetta

Ao longo da minha vida percebi que existe uma coisa em comum entre as pessoas mais bacanas e contagiantes que conheço: elas são as mais acessíveis, e normalmente, não desconfiam de um outsider como eu, muito pelo contrário, convidam para entrar.

Marcello Dantas é um destes caras bacanas que se faz acessível pois é generoso com seu conhecimento. Suas exposições, textos, viagens, conversas com artistas e opiniões, são praticamente todas públicas. Só existe uma coisa que ele não conta: como consegue estar sempre quinze minutos a frente de nós, meros mortais?

Marcello, estou convencida de que o fim “mora” no começo. Como nasceu o curador?

Na essência, o que sempre me motivou foi a possibilidade de atuar com inovação. Me fascinava perceber que de tempos em tempos mudamos o jeito que nos comunicamos. Lembro claramente que meu pai – ator – me “obrigava” a ler Shakespeare quando criança, e obviamente, pela densidade da obra, eu achava uma chatice. Até o dia que li Shakespeare em quadrinhos e fiquei fascinado! Somei a essa lembrança o fato de que só existem umas 36 histórias originais no mundo, mas existem 36 milhões formas de contá-las, ou seja, todas as tramas pelas quais nos interessamos, as traições, os amores impossíveis, as conquistas, etc, estão presentes em todas as culturas de formas diferentes, mas se conectam no território mítico. Quando as transformamos em vivências através de uma nova linguagem aplicada, abrimos um novo mundo. Ao me dar conta disso, pensei: “é isso que me interessa: quero criar caminhos entre o mítico e o ser humano e adaptar a linguagem aos novos tempos”.

E como conectou seu interesse por novas linguagens com o trabalho de curador?

Estudei História da Arte, mas também fiz Cinema e Televisão e essa dobradinha me fez entender que a arte dentro do campo audiovisual não tem limites. Cheguei no mercado no início da revolução digital, ou seja, estávamos “esgotando” as possibilidades do analógico, e de repente, veio a tecnologia abrindo inúmeras possibilidades. Mas o fato é que tanto a arte quanto o papel do curador, tiveram que evoluir para despertar meu interesse.

Mas na prática, como funciona?

Como todo curador, navego dentro de uma mar de informações. Veja bem, na era analógica recebíamos muito menos conteúdo, hoje, somos bombardeados por informações de todos os lados. Meu papel é navegar dentro disso tudo em busca do que faz sentido para que o ser humano possa tolerar a ideia de estar neste mundo. Me considero uma espécie de guia e quem quiser fazer esta “viagem” que segure firme na minha mão.

Estamos prontos para embarcar nas suas viagens?

Certamente, pois o comportamento humano é meu ponto de partida. É nele que me baseio para curar uma exposição ou montar um museu; tudo começa com o público. Com o que cada um tem dentro de si, é possível fazer uma leitura compreensível do meu trabalho.

Quando você diz, que o comportamento humano é um drive para o seu trabalho, pode nos dar um exemplo?

Crédito Cesar Barreto

Na exposição do Anish Kappor (2007), a obra “Ascensão” foi montada em um pavilhão embaixo do Vale do Anhangabaú, um lugar de passagem de muitas pessoas e inclusive de moradores de rua. O artista sacou que precisávamos dar acesso a todos, sem exceção. Para isso, fizemos um trabalho social e os trouxemos para perto. A viagem daquela obra era uma viagem totalmente espiritual, contagiante. Bastava ser humano para compreendê-la. Paralelemente existe uma leitura acadêmica de qualquer obra ou exposição, mas por outro lado, são as reações das “pessoas do mundo” o que mais alimenta a minha alma e é isso que faz sentido na minha vida.

Inclusão e interatividade correm soltas em você…

O Brasil priva seu povo de tantas coisas, por isso, seria inadmissível se no campo cultural, no qual temos a oportunidade de criar um ambiente homogêneo, fechássemos as portas. Acho que se alguém escolhe morar em um condomínio, esta é uma escolha pessoal, mas se somos nós, os agentes culturais a isolar as pessoas, tem algo errado, pois estaríamos fechando as portas para o que nos torna, de fato, relevantes. Por isso é super importante ser inclusivo e isso não tem nada a ver com apertar botões. Interatividade é a inclusão do visitante na equação do que está sendo mostrado. Quando você inclui, você deixa a equação aberta.

Qual a sua opinião sobre a frase: “não existe arte sem humanos”?

A emoção humana é um código decifrável e existem métodos que funcionam e que são a “chave do sucesso”, basta observar o cinema ou músicos/compositores que lançam muitos hits. Somos absolutamente previsíveis. Já existem artigos escritos por inteligências artificiais e até robôs que escrevem poesia. Por isso, aceitar que um humano pode se ausentar, tanto na emissão quanto na recepção da arte, é algo que nos faz repensar todo o processo de criação. Nos anos 1990, Bowie comissionou um aplicativo que continha um enorme banco de dados e randomicamente agrupava palavras em colunas, possibilitando incontáveis frases. Eu lhe pergunto, se você gosta de David Bowie vai deixar de apreciar sua obra por ser pré-concebida por uma máquina? Duvido. Em resumo, a mente humana como é hoje, é rastreável. Por isso, ou expandimos nossos horizontes para além do óbvio, ou seremos relativamente irrelevantes.

Em um artigo recente, você escreveu: “seria essencial que as mentes criativas da atualidade se libertassem das travas humanas, tornando-se precursores do pensamento moderno, assim como foram Yoko Ono, Leonard Cohen e Jack Kerouac”. Quais seriam as ferramentas modernas para isso? E qual é o papel do ego na criação?

Veja bem, o ego é um grande motivador da humanidade, inúmeras obras foram construídas tendo como carro chefe “o ego”, ou seja, não é totalmente negativo. Por outro lado, é importante que possamos viver momentos que nos permitam a dissolução do ego, e isto só vem se nos permitirmos ser vulneráveis. É preciso olhar para fora da nossa identidade com uma nova lente pois é assim que acontecem os insights criativos. Outra forma é a meditação. Meditar nos faz chegar a um lugar único de lucidez e profundidade, porém nem todo mundo detém capacidade para se entregar. Por fim, existem as micro doses de psicodélicos que trazem clareza de uma forma profunda e rápida, mas não é recomendado para todas as pessoas e precisa acompanhamento. O que posso dizer é que qualquer uma das formas acima nos deixa frágil e vulnerável. e isso é bom. O ser humano sem vulnerabilidade é um engodo.

Crédito: Marcello Dantas

Sendo você uma destas mentes criativas da atualidade , como se coloca vulnerável? 

A forma mais linda que eu encontrei e transformou minha vida e minha percepção sobre ela, foram experiências com cogumelo. Em doses adequadas para cada corpo, são capazes de estimular processos sinestésicos, ou seja, nos ajudam a traduzir um sentido para o outro. A linguagem humana, por exemplo, nasceu de um processo sinestésico, pois quando alguém conseguiu transformar o pensamento em sons compreensíveis (palavras), o mundo mudou para sempre. Quanto mais portas abrirmos , mais conseguiremos criar e expandir nossa capacidade humana.

Ou seja, criar linguagens?

Isso mesmo! E percebo que depois de quase 30 anos de trabalho, só agora entendo o que significa de fato criar linguagens; que nada mais é que explorar territórios e viver processos sinestésicos que nos levam a lugares inexplorados. É importante dizer que não faço apologia ao uso de psicodélicos, mas acredito que cada um, dentro das suas possiblidades, deve se permitir abrir portas que nos tornam vulneráveis. Desejo apenas que todos possam cancelar seus egos por um momento, para ver o que sobra.

Vivemos uma pandemia que levou muitos egos por água abaixo. Você teve Covid, o que sentiu neste período?

Que bom que está relacionando estas duas coisas, pois os insights criativos mais profundos que tive nos últimos anos, aconteceram durante sonhos que tive enquanto estava contaminado. Sonhei com morcegos que falavam, e uma das frases deles para mim, era: “por quê vocês persistem em andar de cabeça para baixo”? (Risos). Ou seja, a grande lição disso é entender que o mundo pode ser visto de mil formas e não é a minha que é a melhor. Temos que aceitar outros pontos de vista e entender que não somos donos do mundo, somos apenas passageiros. Se nós não existíssemos, o mundo continuaria maravilhosamente bem. Precisamos entender que (como humanos) temos limites e isso não tem nada a ver com geopolítica, mas com viver entre espécies. Não é sobre brasileiros e americanos, japoneses e africanos; é sobre abelhas e homens, mosquitos e cavalos, morcegos e peixes… e toda essa turma que precisa viver aqui. Nós precisamos valorizar isso, se não, seremos banidos.

Isso me fez lembrar uma entrevista recente, na qual você se define como terráqueo.

Isso mesmo, pois o Brasil não está acima de tudo e deus não esta acima de todos, mesmo porque existem muitos deuses. Eu não sou humano em primeiro lugar, eu sou terráqueo primeiro, pois divido o planeta com muitas outras espécies, e entre elas, os humanos.

Crédito: Juliette Bayen

Você é um viajante compulsivo. O que te “move”?

Eu tenho um amor profundo por este planeta. Não por um bairro, uma cidade ou um time de futebol… eu troco de bairro como troco de roupa (risos). Também não é sobre nacionalidade, pois ela divide as pessoas. O meu amor é pelos oceanos, pelo ar, pelos rios voadores, pelas areais do Saara que batem no Ceará, e é dentro disso que mora a diversidade. A diversidade existe em decorrência do planeta, e não das culturas. Quando se ama o planeta quer se descobrir todos os cantos dele. Até o ano passado viajei como um louco e conheço mais de 60 países, pois eu amo o planeta, a beleza que tem para nos oferecer e as doses de inspiração e sabedoria que ele pode nos dar.

Como ocupou seu tempo e se manteve conectado com as pessoas e com o planeta durante 2020?

Preciso confessar que ADORO meios de transportes e senti muita falta deles. Gosto de qualquer coisa que me leve a lugares, adoro até as minhas pernas que me carregam por ai. Mas não sofri, pois aproveitei para me conectar comigo. Fiz silêncio e abri espaço para viagens para dentro. Em certo momento durante a clausura, me perguntei: o que eu gostaria de fazer, que não fiz ainda? E foi neste momento que trabalhei para elevar o meu estado de consciência. Foi muito inspirador e digo que está tudo bem viajar de olhos abertos…ou de olhos fechados,

Vai ficar mais em casa de hoje em diante?

Eu me sinto em casa em qualquer lugar! Morei em tantos lugares: Itália, Espanha, EUA… e em todos os lugares criei vínculos que me fizeram sentir em casa. Eu vou para qualquer canto e me sinto em casa porque sinto o cheiro do planeta, da terra molhada e da brisa do mar. Não é um móvel, uma cadeira, etc. É o planeta que me faz sentir em casa.

Uma dica para “perceber” o novo?

Simples, não acredite em tudo que você vê. A Imagem é falha e isso vale para arte e para vida. Precisamos acionar mais de um sentido para crermos no que vemos. O problema é que confiamos tanto na visão que esquecemos que este “instrumento” é falho e limitado. Na minha casa (como em muitos lugares com janelas grandes), precisamos colocar pontos de adesivos pretos nos vidros, para que os pássaros não batam e morram, sabe por que? Porque eles confiam demais na visão. Já os morcegos, voam através da audição, e não erram. Eles mapeiam o mundo através de um sonar certeiro. Se quisermos aprender a navegar nos novos tempos, teremos que nos equipar com uma bagagem sensorial mais sofisticada e mais ousada. É preciso usar os cinco sentidos e o sexto sentido também. Observe o amor, se o cheiro não bate, não existe critério visual que segure.

Por fim, o que esperar de 2021?

Nossos sentidos nos guiarão e nos protegerão, mas precisamos potencializá-los, e a melhor forma para isso, é silenciar. A palavra é uma diluição do pensamento, e é no silêncio que ficam muitas respostas, mas ocupamos todo este lugar com o verbo. Se tem algo que aprendi na quarentena de 2020 e que vou carregar para a vida, é que só quero estar estar perto de pessoas que conseguem ficar em silencio comigo.

 

A palavra é uma diluição do pensamento, e é no silêncio que ficam muitas respostas, mas insistimos em ocupar todo este lugar com o verbo

Marcello Dantas

Por Daniela Pizetta

Entrevista inicialmente publicada no canal IGTV do @Iguatemi. Crédito Imagens: Juliette Bayen (fotos Marcello), Cesar Barreto (foto capa catálogo Anish Kapoor CCBB) , Marcello Dantas (cogumelo)