HELOISA SCHURMANN O MAR SERENOU!

A matriarca da primeira família brasileira a dar a volta ao mundo a bordo de um veleiro fez da embarcação seu porto seguro.

Ativista e defensora incansável dos oceanos e da vida marinha, Heloisa Schurmann descobriu velejando, que seu elemento é a Água. “Vou te fazer uma confissão”, disse ela logo no início da conversa: “me considero uma sereia que ganhou pernas. Eu pertenço ao mar e pertencer ao mar é sentir-se sereia. Mas veja bem, isso não tem nada a ver com um padrão estético, o que sinto é que estou em comunhão com a natureza. Prova disso, é que desde 2014, Heloisa e o marido Vilfredo Schurmann não tem casa em terra firme, sua única residência é o Kat, o veleiro autossustentável de 80 pés, projetado e construído no Brasil e atualmente ancorado na Marina de Itajaí, SC.

Em entrevista à Bazaar, Heloisa dá detalhes da sua jornada e sua história parece não caber em uma vida, tamanha é sua sabedoria e vivência. Discreta até sentir o mínimo sinal de escuta ativa, foi em um piscar de olhos, que seu entusiasmo e eloquência transformaram o que seria uma conversa com hora para terminar, em um uma aventura digna das páginas de Júlio Verne; a diferença, é que não é ficção, é vida vivida.

Os traços da independência de Heloisa, foram plantados pela mãe

Carioca da gema, Heloisa cresceu com a família em Ipanema e é a quarta de 5 filhos, sendo 3 irmãos mais velhos e uma irmã mais nova. A menina que se considerava moleca, cresceu em um Rio de Janeiro literalmente maravilhoso. Nos anos 1940, desfrutava de uma cidade que exalava poesia, música e liberdade. Porém, a perda do pai aos 4 anos de idade a fez amadurecer rapidamente. Sua mãe, viúva aos 38 anos com toda essa criançada para criar, arregaçou as mangas e com uma força caracteristicamente feminina, ensinou às filhas que nunca deveriam depender de maridos. E assim, Heloisa se fez forte, mas com uma doçura que exala pelos poros.

Foi justamente esta dualidade que conquistou o jovem Vilfredo Schurmann. Formada em inglês pela NYU, com especialização em pedagogia, deixou Nova York, onde morou com a mãe e com o padrasto americano, para visitar a irmã mais nova que morava em Blumenau (SC), e foi nesta viagem que conheceu seu grande amor, o então dono de uma escola de Inglês, Vilfredo. Deu match! Muita água rolou desde o primeiro beijo, e a atual mudança dos dois para o barco, aconteceu devagarinho. Na verdade, o movimento foi orgânico e começou em 1984, quando juntos, partiram de Florianópolis com os filhos Wilhelm, David e Pierre, na época com 7, 10 e 15 anos, para a viagem marítima que mudaria o curso das suas vidas para sempre e os tornaria conhecidos mundo a fora.

Certamente a família reunida é linda, mas é imensamente inspiradora na sua individualidade

Quem conhece Heloisa, percebe que é sua energia feminina que aponta com precisão os ventos que conduzem o veleiro Kat. “Sabe, eu tenho certeza de que Deus é mulher”, disse ela conectando o divino com sua filha adotiva Kat, (que chegou de surpresa, embarcou na segunda expedição, e cujo nome foi a inspiração para batizar o veleiro da família). A filha trouxe imensuráveis lições de vida. Portadora do vírus HIV desde o seu nascimento, morreu em decorrência da doença aos 13 anos de idade, deixando um legado e uma profunda marca na história da família Schurmann.

Heloisa, o Capitão Vilfredo e os filhos Pierre, Wilhelm e David.
Heloisa e a filha Kat

Ao todo, foram 3 voltas ao mundo e enquanto se prepara para a próxima expedição que leva o nome “Voz dos Oceanos”, marcada para o segundo semestre de 2021, e tem como propósito mapear os estragos causados pelo descarte de plástico no mar e a busca por soluções para o problema, a matriarca afirma que viver no barco é uma lição prática e profunda de que nossos recursos são finitos. Completa dizendo que “a civilização é necessária, pois trouxe inúmeros benefícios, mas também muito desperdício. Por isso, no que puder ser radical, seja radical. Reciclar é importante, mas não basta, é preciso recursar. Pergunte-se: eu preciso mesmo deste novo produto”?

A família coleta o lixo trazido pelo mar em West Fayu
O lixo foi compactado e removido para lugar apropriado

E foi pensando em viver leve, que há seis anos, o casal se mudou definitivamente para o veleiro

Além de desapegar dos excessos que intoxicam corpo e alma, Heloisa exalta que o Kat foi projetado para causar o menor impacto possível ao meio ambiente. “A bordo, nós produzimos a nossa própria energia através de painéis solares. Com ela, abastecemos constantemente nossos equipamentos, transformamos água do mar em água potável e tratamos nosso esgoto com ozônio. O lixo orgânico que produzimos nutre nossa horta e o lixo reciclável é compactado, diminuindo em até 80% seu volume, colaborando com a logística dos resíduos e facilitando o processo de transformação do mesmo”. Segundo Heloisa, morar no barco ancorado, não difere de uma casa em terra firme, o que separa os moradores do Kat da maioria dos humanos que vivem enraizados, é literalmente sua consciência.

Um dia comum na marina começa com cuidados pessoais. Aos 74 anos, a dona do veleiro prioriza seus exercícios, pois sabe que sem força física, não consegue nem pensar. Faz longas caminhadas e diz que seu personal trainer é sua sombra. Durante todos os anos que esteve no mar, nunca falhou em enviar seus exames de rotina a sua médica (que fica em Santa Catarina), e conta, com bom humor, que sua ginecologista os mantém pendurados na parede do consultório como exemplo para que as demais pacientes saibam que não importa a situação, cuidar-se é fundamental. Na pele, só uma base com filtro solar. Não usa esmalte devido a quantidade de plástico na sua fabricação, e sua “assinatura” é um lenço no pescoço, no melhor estilo marinheiro vintage.

Ao recordar quais foram seus maiores desafios morando sobre as águas, Heloisa diz que o mar é professor e, que assim como ela, é calmo por fora e agitado por dentro. Mas que sua maior dor, foi sem dúvida, a perda da filha Kat. “O choque foi muito grande e não consegui dar a volta por cima sozinha, precisei de ajuda”. Na época, Heloisa procurou um médico e o descreve como “um médico de almas”. Foi neste momento que percebeu que não poderia mais falar sobre desapego, se não deixasse sua filha decidir quando seria a hora de partir. E foi deixando-a ir, que Heloisa voltou a ser sereia.

Certamente existe uma força maior que determinou que as duas se encontrassem e que a família viveria uma vida diferente, mas havia uma condição, contar para o mundo, e isso, Heloisa faz com maestria!

 

Heloisa e a irmã Eliane no Rio de Janeiro
Heloisa corta o cabelo de Vilfredo, a bordo do veleiro.
Vilfredo, Capitão e Cheff.
David e Wilhelm comandando a cozinha!

Texto Dani Pizetta

Originalmente publicado na revista Harper´s Bazaar Brasil, edição janeiro/2021, tema: Sustentabilidade.